A civilização egípcia da Antigüidade desfrutou de uma longa estabilidade que preservou uma mesma estrutura social por vários milênios. Situada às margens do Nilo, o território dos Egípcios é cercado por desertos, o que o protegeu contra invasões. Essa longeva estabilidade permitiu um registro de dados astronômicos por milênios, dados esses que foram posteriormente reinterpretados por Ptolomeu no primeiro século de nossa era e, quinze séculos depois, por Nicolau Copérnico.
Figura: Movimento das estrelas ao redor do polo norte celeste, um p ponto fixo do céu em qualquer época do ano. Os traços escuros representam o caminho aparente das estrelas no céu devido ao movimento de rotação da Terra.
A geometria egípcia se desenvolveu milênios antes da era cristã. Um fator propulsor desse desenvolvimento era a necessidade, num país agrícola, da demarcação das terras. Cercas ou marcos eram submersos ou apagados anualmente durante a época das cheias, exigindo um método mais abstrato de delimitação. A geometria egípcia estendeu-se no "projeto'' de suas obras de arquitetura. As Grandes Pirâmides, construídas ao redor de 3000 a.C., tinham faces orientadas para os pontos cardeais com precisão de
grau. Acredita-se que esta orientação serviria para orientar a longa obra de edificação das pirâmides, oferecendo marcos direcionais duradouros. Podemos salientar nessas obras o amálgama de rigor geométrico associado ao sagrado, traço que se tornará mais explícito entre os gregos, e que foi importante sustentáculo filosófico das ciências exatas.

Figura: Trecho de um rolo de couro egípcio, contendo cálculos. Junto com o papiro Rhind, é um dos raros documentos a respeito da matemática egípcia.
A antigüidade da civilização egípcia a tornou portanto precursora da civilização ocidental de diversos modos. A aritmética dos egípcios, ferramenta mestra para viabilizar a administração de uma vasta região controlada por um governo central, terminou, como veremos adiante, por ser assimilada pela cultura ocidental. Os conhecimentos que dispomos da aritmética egípcia provêm praticamente de um único documento, o papiro Rhind, com 80 problemas de matemática. Este papiro data de 1650 a.C. mas há evidências de que os métodos ali exemplificados seriam muito mais antigos.
Seu sistema de numeração, como o nosso, era decimal, mas não posicional tal qual o romano: existiam símbolos específicos para unidade, dezena, centena etc. As somas e subtrações eram realizadas agrupando-se os símbolos dos dois números correspondentes às mesmas potências de 10, um método próximo ao nosso algoritmo, mas sem uso do zero, uma vez que não era posicional.
Figura: Comparação entre uma adição no sistema decimal egípcio e no sistema decimal indo-arábico.
A Multiplicação era reduzida a adições (cf. Struik), "tabuadas'' contendo multiplicações elementares. Por exemplo, para calcular
usa-se a "tabuada'' do 11 (multiplicado por potências de 2), expressando-se 13 como uma soma de potências de 2, assinaladas com um ``
'':


![]() | 1 | 11 |
2 | 22 | |
![]() | 4 | 44 |
![]() | 8 | 88 |
Somas | 13 | 143 |
- Inicialmente 13 é decomposto em potências de 2:
- Em seguida, somam-se as parcelas com dados acessíveis em uma tabela:
. Uma coleção de tabelas auxiliares de cálculo egípcias funcionavam como ``tabuadas'' no sentido de acelerar os cálculos.
A aritmética egípcia privilegiava o cálculo através de frações, e através delas se faziam as divisões. Esta aritmética de frações era baseada nas frações unitárias, ou seja, com 1 no numerador. Uma fração era indicada graficamente com o número do denominador sobre o qual se colocava um símbolo matemático específico: um ponto ou uma espécie de olho estilizado. As demais frações eram então representadas como somas de frações unitárias, preferência singular desses habitantes do vale do Nilo.
Como foi possível decifrar os hieróglifos e conhecer sua cultura? Como foi possível acompanhar procedimentos tão antigos? Esta decifração é, de fato, relativamente recente. No século XIX, tropas de Napoleão encontraram no Egito uma pedra com caracteres diversos esculpidos - a pedra de Roseta -, que continha gravado um mesmo texto em três alfabetos diferentes. Um deles era composto pelos hieróglifos mais antigos, outro por hieróglifos de uma forma popular tardia (hierático) e o terceiro texto em grego antigo, língua bem conhecida no Ocidente atual. O primeiro passo para a decifração foi a comparação da escrita de nomes próprios presentes nos textos, entre os quais Alexandre, Ptolomeu, Cleópatra...
A escrita egípcia não era exclusivamente fonética. Ela possuía em seus primórdios um caráter pictórico, em que imagens representam idéias simples, podendo ser associadas de modo a originar idéias mais complexas. Assim, um olho com certos traços embaixo significava ``choro'', ao passo que duas pernas significavam ``correr'' e um pássaro podia significar o verbo ``voar''. A região do Alto Egito era representada por uma flor de lis, ao passo que o Baixo Egito era representado por um papiro, plantas características dessas regiões. Em suma, era inicialmente, uma escrita ideográfica posteriormente acrescida de símbolos fonéticos.
Figura: Decifração do nome próprio Cleópatra a partir de hieróglifos.
Palavras monossílabas passaram em um período mais tardio a representar os sons a que correspondiam na linguagem falada. Assim o hieróglifo que significava "altura'' (um triângulo) passou a representar o som "K'', por exemplo. No entanto, a despeito de possuir um alfabeto fonético suficientemente completo para representar todas as palavras, os egípcios conservaram muitos dos símbolos ideográficos, além de símbolos especiais para certas sílabas, de modo a reunir uma variedade de uns 500 símbolos diferentes.
Podemos encontrar nesta civilização elementos importantes de nossa própria matemática, em particular seu caráter híbrido, combinando características alfabéticas e ideográficas em uma mesma linguagem. Uma operação aritmética, como a representamos hoje, pode ser considerada um ideograma, no qual a distribuição espacial dos símbolos lhes confere inter-relações específica. O mesmo se pode dizer de símbolos do cálculo integral (derivada ou integral) ou de um operador (o gradiente, por exemplo) atuando em um campo vetorial. Exatamente como no ideograma, as posições relativas de seus elementos traz implícita a atuação de um elemento sobre outro no significado da expressão.
Por ser uma linguagem ideográfica, nossa notação matemática independe do idioma do leitor. O mesmo ocorre com o chinês ideográfico, assimilado no Japão como alfabeto kanji, que é compreensível a um chinês ou japonês eruditos, embora o pronunciem de maneira deversa.
Para entendermos algo da astronomia egípcia, temos de examinar sua cosmogonia, como concebiam a criação do Universo: o mundo teria se formado a partir de uma infinita massa de água. Acredita-se que esta mitologia tenha vindo da Babilônia, que tinha crença semelhante, pois o Egito está próximo do deserto. O rio Nilo, que tem aproximadamente o sentido Norte-Sul seria um afluente de um outro rio maior que corre no sentido Leste-Oeste, fluindo até o reino de Osíris, onde estão os mortos. O rio é materialmente representado pela Via Láctea. Ao longo deste rio a correnteza arrasta um barco que leva o Deus Rá (Sol). O barco é ocasionalmente atacado por uma gigantesca serpente, produzindo os eclipses.
As enchentes anuais do Nilo foram associadas com as cheias do rio celestial, que mudam o trajeto do barco do sol, o qual navega sempre perto das margens do rio celestial. Os céus são vistos como uma réplica ampliada da Terra. A Lua renasce cada mês e é atacada por uma porca, que a faz agonizar lentamente, minguando, para em seguida voltar a nascer crescente. Os planetas também eram vistos como barcas, e a da divindade correspondente a Marte veleja por vezes para trás (este costume de tal divindade corresponde astronomicamente ao movimento retrógrado do planeta Marte em certos períodos).
Ao longo do ano, mudam as constelações visíveis e, na astronomia egípcia, a ``constelação Helíaca'' é a que aparece no céu logo antes do nascer do sol. O céu é primordialmente um preciso calendário regente dos ciclos agrícolas anuais. Por exemplo, o aparecimento de Sírius antes do nascer do sol anunciava a estação das chuvas. Existe uma evidente semelhança entre a divisão do ano em constelações e os signos e ascendentes da astrologia ocidental. O principal compilador da astrologia da Antigüidade para o Ocidente foi Ptolomeu, que viveu no Egito, em Alexandria no século II d.C.. Sua obra ``Tetrabiblos'' contém traços essenciais da atual astrologia Ocidental, parcialmente herdeira da cultura egípcia.
Além da medida do tempo ao longo do ano pelas constelações, os egípcios possuíam um calendário administrativo de 360 dias mais 5 dias sagrados, que se defasava gradualmente do calendário puramente astronômico, medido pela ``constelação helíaca'', e que regia o calendário agrícola de semeaduras, colheitas etc. Os dois calendários se ajustavam periodicamente, para ser exato, a cada
anos. Este ciclo, chamado de ano helíaco.

Tal calendário já era usado desde as primeiras inscrições egípcias conhecidas, tendo permanecido em uso até o inÍcio da era cristã. Além da evidente importância dessa longeva continuidade no estabelecimento da cronologia histórica, este calendário contém uma grande massa de dados astronômicos, registrando os ciclos lunares, eclipses e outros eventos astronômicos que deram base à astronomia subseqüente. De maneira indireta, chegaram até Copérnico,
1500 anos depois, para sustentar a teoria heliocêntrica do sistema solar.

Prof. Hugo Franco, Apostila de Evolução dos Conceitos da Física. Publicação IFUSP 1336/98; 2a edição 2002. Disponível em: < Clique aqui > Acesso em: 20 Abr. 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário