Modelos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana.
Muitos anos atrás, Edmond Leach afirmava: "Eu não quero transformar a antropologia num ramo da matemática, mas acredito que podemos aprender muito, começando a pensar na sociedade de uma maneira matemática” (Leach, 1961). Este artigo compartilha desse ponto de vista e contribui para a atual discussão teórica em antropologia, explorando as possibilidades de tomar emprestada uma nova perspectiva teórica da matemática e das ciências naturais, a assim chamada "teoria do caos". [1]
Todos os paradigmas em antropologia utilizaram sempre modelos mecânicos, no sentido em que "seus elementos constitutivos estão na mesma escala dos fenômenos” (Levi-Strauss,1958, p.311).
De um ponto de vista formal, analogias biológicas em Antropologia são, também, modelos mecânicos, da forma como Levi-Strauss, assim como os cientistas naturais, os definem. Modelos mecânicos são deterministas o que significa que, como qualquer equação algébrica regular, e como a maioria das equações diferenciais, possuem apenas uma solução. Aplicados a fenômenos naturais e sociais, tais modelos são aqueles onde, dadas exatamente as mesmas causas, os resultados são os mesmos. Modelos deterministas, mecânicos, de um ponto de vista formal, são opostos a modelos estocásticos. [2]
A diferença entre modelos deterministas e estocásticos é essencial para compreender o conceito de "caos", conforme usado recentemente nas ciências naturais e na matemática. Num encontro da Royal Society em 1986, "caos" foi definido como "comportamento estocástico ocorrendo em um sistema determinista" (Stewart 1989, p.l7). Assim, nesta nova abordagem, desaparece a oposição absoluta entre modelos deterministas e estocásticos. Um exemplo típico deste novo arranjo é encontrado nas equações de Lorenz. Lorenz entendeu que as equações diferenciais (um típico "modelo determinístico") que usava nos estudos meteorológicos apresentavam resultados com alto grau de variações ("aleatórias") devido a ligeiras diferenças nos seus estados iniciais. Assim, as soluções para estes sistemas eram "instáveis e quase todas não-periódicas" (Lorenz,1963).
Alguns autores (cf. Marcus e Fisher,1986) associaram a "teoria do caos" ao movimento pós-moderno em literatura, humanidades e ciências sociais. Existem, contudo, diferenças muito significativas, apesar do fato de que “caos” e pós-modernismo literário possam ser considerados parte do mesmo movimento cultural amplo (Hayles, 1990), de contestação dos sistemas de explicação vigentes. A diferença mais impressionante é que "caos" está se tornando um novo e abrangente paradigma na matemática e na física, enquanto, na opinião desses antropólogos pós-modernos, o pensamento social da atualidade, inclusive o seu próprio, suspeitaria de “paradigmas abrangentes ”(Marcus e Fisher, op. cit. p. 5).
"Caos" poderá designar um novo e radical caminho para modelos deterministas na ciência, através da incorporação do fator aleatório. É uma expansão do território da ciência e da racionalidade enquanto o pós-modernismo literário, é em larga medida, uma crítica da ciência e da racionalidade.
A indistinção entre as fronteiras da antropologia e da literatura, como proposto por algumas tendências do pós-modernismo, representa uma forte ruptura interna à antropologia: um campo que surgiu nos museus de história natural e que foi percebido, por muito tempo, como a mais “ciência” dentre as ciências sociais.
A compreensão da antropologia como uma espécie de história a ser contada, isto é, apenas um tipo particular de criação literária, é muitas vezes justificada em nome de um relativismo ético e político (cf. Marcus e Fisher, op. cit.).
Não há dúvida que o relativismo representa uma das premissas éticas e metodológicas da Antropologia. Inexiste, porém, qualquer associação lógica evidente entre a adoção da metáfora literária como premissa na antropologia e o abandono de descrições etnocêntricas que exageram a violência, a crueldade ou o comportamento sexual bizarro de povos distantes. Isto é, entre relativismo e o “escrever da cultura”. Por outro lado, explicações que tomam, costumes estranhos inteligíveis e, portanto, racionais, podem desempenhar uma importante contribuição para a tolerância frente à diferença, pelos que pensam a diversidade humana. Há uma velha tradição filosófica (e até teológica) que associa racionalidade com tolerância
Tolerância e preconceito podem ser encontrados na antropologia desde seu início, mas a metáfora literária pós-moderna pode ser, por si só, um novo perigo para os "nativos" antropológicos. A falta de importância do autor e sua irresponsabilidade frente ao texto (cf. Foucault, 1979) - associada à prosaica, porém efetiva, pressão no sentido de se publicar para um público externo extenso, sonho de todo escritor - pode representar uma séria ameaça às populações estudadas. Autores literários escrevem para seus leitores e, conseqüentemente, têm a tendência de dizer o que sua audiência quer escutar, ou melhor, ler.
Esta reação, às vezes, sem uma discussão mais aprofundada, contra uma antropologia racional manifesta a reação global contra a racionalidade dos tempos de hoje.
A racionalidade entendida como a própria essência do humano é considerada, desde os gregos - idéia que voltou a se fazer sentir, com toda a força no iluminismo - a base para a organização da sociedade política: Rosseau e o “contrato social” seriam as instâncias típicas, pois os seres humanos, pelo uso da razão, acordariam em conviver segundo regras aceitas por todos. A razão nunca deixou, porém, após o surgimento de religiões como o cristianismo e o islamismo, de estar associada com a idéia de “alma”, com a escolha livre (“livre arbítrio”). Quando o Padre Bartolomé de Las Casas afirmava que os índios americanos eram seres humanos pois possuíam alma, dizia, também, que eram capazes de escolher livremente, racionalmente, entre o bem e o mal.
Nos últimos anos, a premissa da racionalidade tem sido associada com planejamento e dirigismo centrais, violência do estado e governo militar-tecnocrático, contrariando a tese Weberiana central da racionalidade disseminada por toda a sociedade. O problema é que o “estado racional” , deste tipo, baseia na idéia da razão como privilégio de alguns que, em seu nome, e do saber técnico que a faria exclusiva, imporiam sua vontade ao restante da sociedade. Não obstante, ainda é um fato que a convicção sobre a qual se funda a democracia é a da racionalidade da pessoa comum e que a maioria dos indivíduos tem condições de escolher o que é melhor para si mesmos e para a coletividade.
É, assim, uma falácia rejeitar a premissa da racionalidade, por sua associação com a modernidade e os estados totalitários contemporâneos. Esses são justificados (hegelianamente) pela crença de que a razão cabe a poucos e identifica-se com o estado. A premissa da democracia é a oposta: a de que a razão se distribui por todos os indivíduos de diferentes estratos sociais.
As Ciências Sociais são ideologias que refletem e afetam as sociedades que as produzem, Assim, a escolha da poesia, por exemplo, por algumas linhas da antropologia pós-moderna, como o principal canal de comunicação entre culturas diferentes, exprime a suposição da impossibilidade de comunicação transcultural, pelo uso da razão. No entanto, tem sido esquecido, que em alguns contextos, um discurso densamente simbólico e poético pode tornar-se um pretexto para um comportamento irracional dos sujeitos do discurso e da ação, pois os seres humanos descritos, isto é, objetos do discurso e da ação seriam, também eles, irracionais, “maravilhosamente irracionais”, como o Zaratrusta de Nietzche.
A metáfora literária, sem maior crítica, pode também vir a ser uma ameaça séria para uma antropologia de boa qualidade, porque uma pesquisa cuidadosamente realizada não é condição para escrever uma peça literária. Assim, a identidade literária em antropologia pode produzir adjetivos em excesso e etnografias insuficientes, como, de fato, se tem observado em algumas produções do gênero.
Considerando a presente crise de paradigmas, tão bem diagnosticada por cientistas sociais pós-modernos, e a fragilidade da solução que apontam, essas são boas razões para discutir alternativas. Penso que a utilização de novos modelos matemáticos poderá contribuir para o avanço teórico da questão.
As principais propostas para usar modelos de caos como metáfora em antropologia são as seguintes:
1. A desordem é o estado comum na natureza . A organização é uma exceção e, apenas, um momento, uma descontinuidade interna ao estado de desordem.
A desordem absoluta seria pura aleatoriedade. Na teoria do caos, contudo, o modelo explanatório abrangente permanece determinista, mesmo aberto o espaço para várias soluções alternativas diferentes. O modelo determinista opera durante um estágio lógico na explicação e é suspenso durante o estágio lógico subseqüente.
A transferência desta posição metodológica relativa à natureza para o campo das ciências sociais é extremamente interessante. Propõe a desordem, intermediada por estágios e níveis ordenados, como a situação corrente na vida social e na cultura.
A implicação metodológica desta premissa no campo da Antropologia é a de que os antropólogos deveriam desistir de ingênuas tentativas de explanações funcionais, pois a falta de explicação é a maneira mais fiel de se retratar o mundo.
A existência de vastas áreas de vida social que, simplesmente, não podem ser explicadas, não representa um simples problema de contextualização adequada, pois os antropólogos podem supor que o seu modelo tenha se tornado caótico quando não podem explicar, e isto constitui, por si só, uma explicação. Além disto, a metodologia não deveria procurar, apenas, o que pode explicar, mas também o que não se pode explicar. Às vezes o inexplicável pode ser muito mais interessante do que o que o que explica através das cansativas explicações correntes.
2 - Fenômenos caóticos podem ser descritos como sistemas de equações não-lineares (sistemas complexos)
Devido à primeira premissa acima, a da desordem, a pura descrição sem explicação, passa a ser assumida como um aspecto essencial do trabalho do antropólogo. A conseqüência para a metodologia antropológica é a de que os antropólogos deveriam sentir-se obrigados a descrever tudo o que encontram no campo, mesmo o que o não tem explicação.
Daí a analogia com sistemas complexos de equações.
Sistemas complexos de equações não têm solução, mas representam descrições eficientes de relacionamentos muito complicados. Quando transpostos para a antropologia, redescobrimos a idéia bastante familiar e antropólogos boasianos, de que enquanto não podemos explicar tudo, temos a obrigação de descrevê-lo da melhor maneira possível.
A necessidade de ser "elegante” , como na formulação de sistemas complexos, torna-se um grande desafio e uma constante necessidade quando um grande volume de dados é apresentado. Aqui a questão literária, o “escrever bem”, voltaria, mas com uma conotação bastante diversa das formulações pós-modernas, ou seja, como um forma de comunicação necessária ao exercício da razão. Não como uma forma de emoção estética alternativa à razão , mas como uma necessidade mesma do exercício da razão.
3. Alguns tipos de fenômenos apresentam uma extrema sensibilidade às suas condições iniciais.
O melhor exemplo aparece novamente nas equações de Lorenz. Tênues, imperceptíveis diferenças nas condições iniciais afetam o futuro comportamento do sistema em longo prazo.
Lorenz, um meteorologista, criou a expressão "efeito borboleta", querendo dizer que o bater das asas de uma única borboleta produz mudanças infinitesimais no tempo, em curto prazo, mas, em longo prazo, pode tornar-se a causa de tempestades ou mudanças atmosféricas em outra região do mundo. O fator do batimento da asa da borboleta não pode ser medido.
Transferida para a sociedade e a cultura humanas, a metáfora do "efeito borboleta" é fantástica. O comportamento de um único indivíduo pode afetar (ou não) o total da cultura e da história humanas. A própria borboleta batendo suas asas, mudando o tempo que influencia decisões humanas, pode mudar, assim, a cultura. A questão não é apenas de incerteza, mas também de imprevisibilidade. O acaso, a biografia e a vontade individual se tornam centrais na explicação. Grandes homens em posição poderosa podem ser estratégicos para explicar a moldagem da cultura porque sua influência é conhecida mas, aqueles que não têm poder podem também alterá-la, sem que o seu papel seja detectado.
A questão do poder e da decisão individual voltam a ser consideradas, na mudança e na estabilidade da cultura.
4 - Diferenças de escala são essenciais na explicação
A relação entre uma borboleta que voa e um furacão (e vice-versa) é uma relação complexa entre fenômenos em escalas diferentes. Mandelbroth (1982) inventou a geometria fractal, baseada em diferença de escala, que tem sido entendidas como uma espécie de apêndice aos modelos de “caos”.
Diferenças de escala sempre foram um problema crucial nas ciências sociais. Um exemplo clássico de um tratamento de escala, especialmente indicado para o estudo de sociedades complexas, origina-se do conceito marxista de “totalidade” . Nesta ótica, a mediação entre totalidades parciais e sua relação com o todo é uma questão estratégica.
A escala tem sido um problema importante em antropologia, até para distinguí-la epistemologicamente da sociologia, devido à sua aproximação preferencial a grupos de pequena escala. As questões relacionadas à escala, na antropologia, têm abrangido questões tão diversas como o papel explanatório de totalidades funcionais, a noção etnográfica de holismo antropológico e os limites grupos étnicos, por exemplo.
As ciências sociais modernas empenham-se na formulação de modelos mecânicos. Alguns desses modelos estabelecem relacionamentos hierarquizados entre escalas diferentes. Quando tais modelos se tornam "caóticos", o relacionamento entre níveis de escala diferente fica desestruturado . A partir deste momento, o acaso e os acidentes caracterizam os relacionamentos entre níveis de escalas diferentes.
Estas proposições são as idéias básicas que podem ser extraídas da teoria do caos para criação de uma metáfora matemática para a antropologia São, também, os seus limites atualmente.
[Continua...]
George Zarur.Sorte e Azar, Verde e Amarelo:modelos matemáticos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana Disponível em:<http://www.georgezarur.com.br/artigos/116/sorte-e-azar-verde-e-amarelo-modelos-matematicos-de-imprevisibilidade-aplicados-a-cultura-humana>. Acesso em 20/04/2011
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