sexta-feira, 6 de maio de 2011

Laplantine, Laraia e Geertz - Antropologia e Cultura

RESUMO:

A partir da leitura e análise das obras de Geertz, Laplatine e Laraia, procurar-se-á entender o processo de constituição e consolidação da antropologia moderna, tendo como ponto referencial de análise o conceito de cultura, entendido enquanto seu principal objeto de estudo.

DESENVOLVIMENTO:

Mesmo que de maneira inconsciente, o homem sempre procurou refletir sobre a sua humanidade, reflexão esta que se acelerou a partir do momento em que esta mesma humanidade, entenda-se aqui a Europa Ocidental, se deparou com a alteridade. Este "choque" num primeiro momento, não propiciou o alargamento da visão humana, mas pelo contrário criou condições propícias para o desenvolvimento de uma concepção etnocêntrica, como bem revela a citação seguinte,
"Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros". (LARAIA, 2003)
Com as Grandes Navegações, iniciadas no século XVI, a Europa Ocidental entra em contato com os habitantes do "Novo Mundo", e essa descoberta da alteridade leva estes ocidentais a uma dupla resposta ideológica que traz, como pano de fundo, a dificuldade em enxergar a diversidade das sociedades. De um lado, estes habitantes são incorporados na figura do mau selvagem, base de sustentação da ideologia colonizadora e, por um outro lado, a partir da figura do bom selvagem de Rousseau, inicia-se a crítica da civilização e o elogio da "ingenuidade original". A repulsa se transforma em fascínio, mas os termos de atribuição e a estrutura permanecem os mesmos.
O importante é identificar no Renascimento a gênese da interrogação sobre a existência múltipla do homem, interrogação esta que sofrerá um processo de profunda reflexão apenas com o advento do século XIX. Com efeito, é neste século que se constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina autônoma: a ciência das sociedades primitivas em todas as suas dimensões.
Esta antropologia nasceu a partir de uma teoria que se empenhava em reforçar a concepção etnocêntrica dos critérios ocidentais como padrões para a natureza humana. Tal teoria, denominada evolucionismo, procurava afirmar a existência de uma espécie humana idêntica que, apesar de se desenvolver em ritmos desiguais, acabaria passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final que é o da "civilização". Um dos pontos positivos do evolucionismo encontra-se no fato de ter mostrado que as diferenças culturais entre os grupos humanos não eram conseqüência de predisposições congênitas ou climáticas, como pregavam os adeptos do determinismo biológico ou geográfico, respectivamente. Neste ponto, torna-se interessante ressaltar o quanto estas teorias, sobretudo a do determinismo biológico estão presentes no imaginário popular.

"Tenho a física no meu sangue" – dizia uma aluna que pretendia mudar a sua opção de ciências sociais para a de física, invocando o nome de um ancestral. "Meu filho tem muito jeito para a música, pois herdou esta qualidade do seu avô". [Agindo dessa forma], Cesare Lombroso (1835-1909), criminalista italiano, (...) procurou correlacionar aparência física com tendência para comportamentos criminosos. (...) Teoria [que] encontrou grande receptividade popular e, até recentemente, era ministrada em alguns cursos de direito como verdade científica. (...). (LARAIA, 2003)

A principal reação ao evolucionismo se iniciou com Franz Boas (1858-1949). Um dos pais fundadores da etnografia, Boas desenvolveu o particularismo histórico, segundo o qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou.
Na primeira parte de seu livro, LARAIA expõe o desenvolvimento, na antropologia, do conceito de cultura a partir das manifestações iluministas até os autores modernos. Procurando traçar um antecedente histórico deste conceito, o autor cita o pensamento de Edward Tylor (1832-1917), primeiro a empreender tal formulação,

"Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este [conceito de cultura] todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Com esta definição, Tylor (...) marca fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (LARAIA, 2003)

A partir deste momento, prossegue o autor, as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito. A principal tarefa da antropologia moderna seria a de reconstrução, a partir de uma diversidade de fragmentos teóricos. Dentro deste contexto é que chegarmos ao ano de 1.973, quando GEERTZ escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente.
Autor de uma vasta obra, este antropólogo norte-americano discorre sobre a prática etnográfica, com o objetivo de reduzir o conceito de cultura, tornando-o mais específico. Sobre a prática antropológica, esclarece a necessidade de não apenas captar fatos, mas esclarecer os mesmos, reduzindo-se a perplexidade ou, em outras palavras, familiarizando o exótico.

Aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é infinitamente problemático. [Estranhamento é a] perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. (...) Aos poucos notamos que o menor de nossos comportamentos (...) não tem realmente nada de "natural". (...) O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. (LAPLANTINE, 1988)

Um outro perigo na atividade antropológica seria o de querer capturar o mundo amplo (essência das sociedades nacionais, civilizações ou grandes religiões) no pequeno (cidades e aldeias "típicas"). Essas reflexões suscitam a interrogação sobre a atividade do etnógrafo. Para GEERTZ,
O que inscrevemos (...) [é] apenas àquela pequena parte do discurso social que os nossos informantes nos podem levar a compreender. (GEERTZ, 1989)

Admitindo a cultura como algo público, ressalta que a principal desordem teórica da antropologia contemporânea encontra-se em conceber a cultura como localizada na mente e no coração dos homens.
A cultura é pública porque o significado o é. Você não pode piscar (...) sem saber o que é considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas pálpebras. (...) Mas tirar de tais verdades a conclusão de que saber piscar é piscar (...) é revelar uma confusão tão grande... (GEERTZ, 1989)

Um outro ponto trabalhado por Geertz diz respeito à diversidade cultural. Com efeito, uma das tarefas da antropologia que se forjou nos braços do iluminismo era a de "estabelecer uma escala de civilização", colocando as nações européias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto da humanidade entre estes dois limites. Sobre este ponto, também LARAIA nos fala:
Predominava (...) a idéia de que a cultura desenvolveu-se de maneira uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade percorresse as etapas que já tinham sido percorridas pelas "sociedades mais avançadas" (...) Etnocentrismo e ciência marchavam de mãos juntas. (LARAIA, 2003)

Mais uma vez o ponto em pauta é a teoria evolucionista, agora revelada em sua característica discriminatória, com nítida vantagem para as culturas européias. O autor reconhece que existe uma grande variação natural de formas culturais, reconhece que esta variação é o grande recurso da antropologia, mas que este recurso não é devidamente utilizado e, finalmente, lança a questão sobre de que maneira tal variação pode enquadrar-se com a unidade biológica da espécie humana.
No segundo capítulo de seu livro, Geertz tenta esclarecer a natureza humana, tomando como ponto de partida a perspectiva iluminista, ilusória, de uma natureza humana constante. A antropologia moderna, por sua vez, traz a firme convicção de que não existem de fato homens não modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram e não o poderiam pela própria natureza do caso.
O autor afirma que as reformulações do conceito da cultura e do papel da cultura na vida humana produzem uma definição de homem. A perspectiva tradicional acredita que o ser físico do homem evoluiu até seu limite máximo e que, a partir deste momento, iniciou-se o desenvolvimento cultural. Dentro desta perspectiva, o homem teria se tornado homem quando foi capaz de transmitir "conhecimento, crença, lei, moral, costume" a seus descendentes e seus vizinhos através do aprendizado. Contrapondo-se a esta idéia, Geertz afirma que a cultura foi um ingrediente, essencial, na produção desse mesmo animal, em vez de ser acrescentada a um animal acabado.

Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura (...) seriam monstruosidades incontroláveis com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto. (...) Como nosso sistema nervoso central [cérebro] cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida pelos sistemas de símbolos significantes. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens. (GEERTZ, 1989)

A fronteira entre o que é controlado de forma inata e o que é controlado culturalmente no comportamento humano é extremamente mal-definida e vacilante. O homem não pode ser definido nem apenas por suas habilidades inatas, como fazia o iluminismo, nem apenas por seu comportamento real, como o faz grande parte da ciência social contemporânea, mas sim pelo elo entre eles, pela forma em que o primeiro é transformado pelo segundo.
O ensaio "O Crescimento da Cultura e a Evolução da Mente", coloca os principais argumentos de Geertz contrários a interpretação fechada da cultura e da mente humana. O texto é dividido em quatro seções, nas quais se descreve a maneira como a mente foi tratada pela ciência cognitiva, antes de 1963, enquanto se ataca a posição falaciosa da antropologia etnocêntrica. Em seguida, um ponto de vista gradualista da evolução natural humana (teoria da unidade psíquica da humanidade) é defendido contra a tendência a favor de uma mudança abrupta dos estágios biológicos para os sócio-culturais (teoria do "ponto crítico"). Na terceira parte, os limites da explicação neurofisiológica são apontados e o controle cultural sobre a atividade mental é esboçado, para, finalmente, concluir pela existência de uma estrutura simbólica pública capaz de explicar adequadamente o desenvolvimento cultural e a evolução mental.

A tese que mantém a evolução mental e a acumulação cultural como dois processos inteiramente separados, estando o primeiro basicamente completo antes que se iniciasse o segundo, é incorreta em si mesma. (GEERTZ, 1989)

Os debates indicam não ser aconselhável a forma padronizada de tratar em série os parâmetros biológico, social e cultural – sendo o primeiro tomado como anterior ao segundo, e o segundo anterior ao terceiro. Esses níveis devem ser vistos como inter-relacionados reciprocamente e considerados em conjunto.
Ao definir cultura, GEERTZ a relata como sistema ordenado de significado e símbolos, nos termos dos quais os indivíduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus julgamentos. Não apenas as idéias, mas as próprias emoções são, no homem, artefatos culturais. Na segunda parte de seu livro, LARAIA mostra, de uma maneira mais prática, como a cultura influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade, apesar de sua comprovada unidade biológica. Condicionando a visão do homem, a cultura leva-o, por exemplo, a reagir de maneira negativa com aqueles que fogem aos padrões de comportamentos aceitos pela maioria da comunidade.

O fato de o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. (...) Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância, e, freqüentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. (LARAIA, 2003)

Este costume de discriminar os que são diferentes, porque pertencem a outro grupo, pode ser encontrado mesmo dentro de uma sociedade. Além disso, a cultura pode ainda condicionar aspectos biológicos e até mesmo decidir sobre a vida e a morte dos membros do sistema. Determinadas doenças psicossomáticas são fortemente influenciadas pelos padrões culturais.
Um outro ponto relevante de discussão refere-se ao fato de que nem todos os indivíduos participam de maneira homogênea de sua cultura. Sendo sua participação limitada; não existe a possibilidade de um indivíduo dominar todos os aspectos de sua cultura. O importante, porém, é que exista um mínimo de participação e de conhecimento por parte de determinado indivíduo do processe cultural do qual ele faz parte, e que este conhecimento mínimo seja partilhado por todos os componentes da sociedade de forma a permitir a convivência dos mesmos.
Cada sistema cultural está sempre em mudança. Ter esta compreensão é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir.
A discussão não terminou – continua ainda –, e provavelmente nunca terminará, pois uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana.



Laplantine, Laraia e Geertz - Antropologia e Cultura. Disponível em: <http://analgesi.co.cc/html/t11867.html>. Acesso em: 06 Mai. 2011

segunda-feira, 2 de maio de 2011

[Continuação parte 3...]
O exemplo da “asa da borboleta” levando a furacões, tem sua grande metáfora sociológica no acidente afetando a história humana. A história está cheia de exemplos de situações limite como a das grandes batalhas, como Napoleão em Waterloo, por exemplo, e o fatal atraso de um de seus generais.
No caso brasileiro, um acontecimento recente foi a morte do Presidente eleito Tancredo Neves. O que aconteceria se tivesse Tancredo assumido o poder em lugar de José Sarney?
De um ponto de vista funcional/mecânico clássico nada teria acontecido, pois tanto um como outro indivíduo estaria desempenhando o mesmo papel atribuído pelo sistema político.
De um ponto de vista de modelos de indeterminação, entretanto, a diferença entre indivíduos é essencial, especialmente entre os que por ocuparem posições de poder e, que por isso, tenham condições de influenciar da forma mais direta a vida dos demais. As vontades, as percepções e as iniciativas e por sua vez, a “sorte” de cada um, isto é o acaso, assume uma grande importância.
O exemplo mais evidente neste sentido, é o da própria doença e morte de Tancredo Neves. Outro seria a vitória de Luis Inácio da Silva ou de Leonel Brizola na eleição de 1990. A derrota de Lula por um número mínimo de votos representou um fato crucial na recente história brasileira. O que aconteceria se Tancredo estivesse vivo ou se Lula tivesse vencido? É possível que cento milhões de brasileiros tenham tido, coletivamente, azar.
Este é um aspecto por definição, pouco útil para o processo explanatório tradicional, embora marque uma fundamental diferença metodológica ao enfatizar longas e detalhadas reconstruções históricas. Uma mudança de humor, ou uma doença, ou ainda, um único humilde soldado que não cumpra seu dever podem transformar o mundo. Por isto a maior parte dessas causas dos processos históricos e culturais permanecerão, para sempre, desconhecidas.
Assim, apenas supomos que a crise brasileira, em seu estado caótico, resulta do encontro e desencontro de uma miríade de decisões individuais e de acidentes envolvendo esses mesmos indivíduos.
III. Conclusões: Caos na cultura
Identifiquei quatro possibilidades de operação da metáfora matemática do caos em antropologia.
A primeira é o reconhecimento de que a desordem é um estado comum da vida social, que emerge quando um modelo prévio determinista se tome caótico. Este estudo do Brasil está enquadrado num modelo determinista da cultura tradicional. O modelo tomou-se caótico no momento em que se desfizeram os laços de lealdade que unificavam o país todo, amarrando as classes e, horizontalmente, as próprias oligarquias. Desapareceu a lei habitual baseada na reciprocidade; foi substituída pela aleatoriedade. A partir deste momento, o modelo determinista não opera mais e a aleatoriedade assume o controle.
Modelos deterministas têm sido o principal interesse das ciências sociais e os ingredientes usuais das ideologias nacionais. A idéia de um crescimento metódico é central para o processo brasileiro de construção da nação. O caminho determinista anterior - os brasileiros escreveram em sua bandeira as palavras “Ordem e Progresso” - desapareceu. O acaso teve um papel que toma a presente situação especialmente confusa- a morte, por exemplo, de um grande líder, o Presidente Tancredo Neves, que adoeceu no exato dia em que iria assumir o cargo, em 1985 foi "falta de sorte" em escala nacional. Embora os brasileiros façam especulações sobre a maneira pela qual se chegou à presente situação, não existe consenso (veja a lista acima).
A sociedade brasileira de hoje passa pela experiência do caos determinista de três modos diferentes:
1° - O sistema determinista anterior se tomou aleatório;
2° - A situação presente não pode ser adequadamente explicada;
3° - O acaso é evidentemente um fator significativo no presente e no futuro do país. Tudo pode acontecer, o que aliás é verdade, também, para a situação internacional, especialmente após o fim da União Soviética.
A segunda proposição que define a metáfora do caos na antropologia é a extrema sensibilidade de alguns tipos de fenômenos quanto a suas condições iniciais. Esta proposição é traduzida na antropologia pela influência de seres humanos individuais nos acontecimentos históricos. Muitas das situações associadas com o "fator de batimento das asas da borboleta" continuam despercebidos, por definição. Apesar disto, a desordem e a prevalência do acaso abrem urna possibilidade mais forte para o peso da influência do indivíduo na história
A terceira proposição para a metáfora do caos na antropologia é a analogia com sistemas de equações não-lineares (sistemas complexos): não têm solução mas podem produzir descrições eficientes de conjuntos de relações extremamente complicados. Da mesma forma, a situação brasileira atual, como percebida pelos brasileiros, não tem uma explicação clara, uma "solução". Ela pode, contudo, ser descrita de maneira racional e sistemática.
Finalmente, o quarto aspecto trazido pela metáfora do "caos" é a consideração de níveis de escala na explicação. Níveis de escala diferentes, abrangendo da cultura nacional à instituições, pequenos grupos e indivíduos, passam a assumir papel central. No momento em que o modelo determinista prévio tornou-se caótico, houve uma mudança nas relações entre níveis de escala diferente, com a substituição de relações estruturadas pela por novas relações de ocorrência aleatória.
Espero que a idéia de caos possa ajudar a encontrar meios para lidar com a questão da incerteza de um ponto de vista metodológico em ciências sociais. A suposição da impossibilidade de uma explicação racional é substituída pela idéia de aleatoriedade e pela idéia de explicação a tal nível de detalhe que é impossível detectá-lo. Supõe-se que exista sempre uma explicação, mesmo quando não exista explicação alguma.
Logo, um terceiro nível, o da aleatoriedade pode ser adicionada às dicotomias clássicas, como status e contrato de Maine ou comunidade e sociedade de Weber.
Uma das condições que definem a aleatoriedade, a predominância da escolha individual, não foi inteiramente negligenciada em antropologia. Firth (1951), por exemplo, descreveu a "organização social" como o nível da escolha individual, em contraste à permanente e estável "estrutura social". Situou-a, contudo, em uma posição periférica em seu esquema interpretativo. Além disto, a escolha individual é apenas uma das condições que definem a aleatoriedade. O simples acidente é outra Os acidentes podem tornar-se, às vezes, conhecidos, apenas através da análise histórica
A ênfase nas diferenças de escala, associando sociologia, antropologia, história e psicologia é outra característica da metáfora do "caos" compartilhada com algumas visões pós-modernas que desconsideram limites disciplinares. Por outro lado, a ênfase no trabalho-de-campo, no estilo de Malinowsky, continua a ser uma diferença importante face a essas mesmas formulações pós-modernas. De fato, algumas chegam a desconsiderar a importância do trabalho campo antropológico tradicional.
A metáfora do "caos" oferece urna alternativa às perspectivas que descartam a racionalidade. De um ponto de vista latino-americano [3] , a racionalidade continua a ser uma conquista altamente desejável para a sociedade. Por outro lado, todos os seres humanos devem ser considerados racionais: este é um aspecto essencial da sua humanidade. Desta forma, suas ações podem ser explicadas por meios racionais e a antropologia torna-se um meio para compreender o comportamento que, não fosse por isto, seria considerado irracional.
Um relativismo que faça algum sentido nas ciências sociais deve exprimir estas suposições.

[1] 1 - Leach, no seu artigo "Rethinking Anthropology” ("Repensando a antropologia", l959),sugeriu o procedimento metodológico da "generalização", pelo uso da metáfora matemática como um meio de substituir a "comparação" na antropologia social britânica, um procedimento que ele considerava similar a "coleção de borboletas",. Esta foi uma proposta bastante desorientadora, pois a indução aristotélica através da comparação foi considerada, por milhares de anos, como a maneira certa de generalizar. Assim, a metáfora matemática trazida por Leachpar e a antropologia não substituiu "comparação" por "generalização" como ele presume. Era, antes, uma nova maneira de generalizar. Apesar disto, ele foi quase profético quando levantou a questão de analogia entre o setor específico da matemática conhecido como topologia e a sociedade humana. Topologia, uma criação do matemático francês Poincaré, é o primeiro passo histórico em direção só que hoje em dia tem sido o campo de sistemas dinâmicos na matemática, considerado como um ramo da perspectiva do caos.
[2] não a "modelos orgânicos".
[3] Veja o filósofo mexicano Leopoldo Zea (1988) no seu "Discurso Desde a La Marginalizacion y la Barbarie "(1991). Para superar a nossa atual condição de "bárbaros", um alvo necessário é a racionalidade.

George Zarur.Sorte e Azar, Verde e Amarelo:modelos matemáticos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana Disponível em:<http://www.georgezarur.com.br/artigos/116/sorte-e-azar-verde-e-amarelo-modelos-matematicos-de-imprevisibilidade-aplicados-a-cultura-humana>. Acesso em 20/04/2011

[Continuação parte 2...] O período caótico

Os brasileiros escreveram em sua bandeira o lema positivista “Ordem e Progresso” . Esta palavra de ordem tem um outro sentido, o de um modelo mecânico aplicado à história. A idéia é a de um crescimento nacional, ordenado e inexorável, um aperfeiçoamento constante, uma marcha regular para cima e para melhor.
A história brasileira pode ser considerada como a tentativa da elite de manter o controle da sociedade através da idéia de ordem, à custa de uma altíssima dose de repressão e violência. A idéia de “ordem”, identificada com a “paz social”, isto é, com o controle incontestável das elites, se necessário, com o uso corriqueiro da violência direta, é eficaz para a explicação da história e da cultura política brasileiras. É a síntese de uma ideologia política, mas mais do que isto, um modelo mecânico aplicado por um grupo que detém o poder sobre uma sociedade. A evidência de sua eficácia é a sempre lembrada suposta “estabilidade política” do País, quando contrastada com as nações da América espanhola.
Por outro lado, a idéia de progresso levada à prática também seria confirmada pela história do País. Até os finais da década de 70, o Brasil teria sido um país com uma das maiores taxas de crescimento do PIB, talvez a mais alta, por um período contínuo de cerca de 100 anos.
O controle da elite sobre a sociedade era possível pelas condições de equilíbrio desta última, ou seja, a sociedade também ser organizava a partir de um modelo mecânico, de um modelo de equilíbrio que se reproduzia ao longo do tempo.
Este modelo surgia de uma forma tradicional de organização caracterizada por grupos oligárquicos organizados a partir de idéias familísticas, possuidores de grandes extensões de terra que construíam uma comunidade política unificadora de suas regiões. A articulação entre essas oligarquias regionais era a condição para a unidade política do Brasil. Já a massa pobre da população se vinculava a esses grupos patronais-oligárquicos, através de laços do tipo “compadrio” e, por seu intermédio, com a sociedade política, como um todo. A lealdade pessoal, como um aspecto central do código de honra das pessoas consistia no laço cimentando tanto a relação interna aos grupos oligárquicos, como a da população subordinada a esses grupos.
A melhor descrição deste sistema - através, também, de um modelo mecânico - ainda é encontrada em Oliveira Vianna quando identifica diferentes tipos de “clãs” no sistema político brasileiro do começo do século: o "Clã de feudo" reunindo o fazendeiro, sua família e seus agregados. As famílias relacionadas da oligarquia local criam o "Clã parental", as “camadas inferiores não têm solidariedade de classe nem parental." Participam, como um todo do “clã eleitoral” , que congrega vários clãs parentais, que trazem de arrasto seus peões e agregados. A sociedade se constrói por relações pessoais de lealdade.
O processo de abandono de um modelo mecânico de direcionamento da história pela elite, corresponde ao próprio processo de transformação da sociedade em que a elite tradicional vai deixando de existir. A sociedade torna-se incapaz de produzir uma elite comprometida com uma comunidade construída localmente. Na medida em que a sociedade vai entrando em um estágio caótico, o mesmo acontece com a elite e com sua capacidade ou sua ilusão de controlar o destino da história do País.
A quebra do sistema político tradicional brasileiro passa pelo crescimento econômico e pela urbanização recentes, com acentuadas características de concentração urbana da população, concentração industrial no Centro-Sul e crescimento acelerado da classe média. Corre paralelamente ao processo de descomprometimento da elite com o destino nacional. Este último movimento tem dois aspectos.
O primeiro é a substituição da lealdade com os velhos clãs descritos por Oliveira Vianna por outras comunidades políticas. Devido ao treinamento em larga escala, especialmente nos Estados Unidos, e ao trabalho no exterior, setores importantes no interior da elite passam a dedicar sua lealdade a comunidades concretas situadas fora do País.
O segundo é a ideologia que legitima essa mudança de lealdade para essa nova comunidade política construída a partir de universidades, instituições internacionais e empresas multinacionais: o conceito de nação perde para as elites seu valor simbólico e afetivo. É substituído pelos conceitos de mercado de mercado econômico e “modernidade”.
2 – A Impossibilidade/possibilidade de explicação
A existência da situação caótica é claramente percebida por todos no Brasil.
O senso de responsabilidade aristocrático/ patrimonialista da elite, quanto ao país e ao povo, desapareceu depois de 20 anos de governo militar. O mesmo aconteceu ao conjunto de relacionamentos pessoais anterior, que incluiu grande sistema político brasileiro tradicional. laços de lealdade estavam sendo rompidos em todo lugar com exceção daqueles no interior dos pequenos grupos de tipo familiar que ainda representam forma básica de organização na sociedade brasileira.
Desde a crise econômica dos anos oitenta, o país tornou-se uma arena para lutas ferozes entre grupos dentro de cada uma das suas instituições. Os grupos lutam para manter suas posições numa conjuntura onde as oportunidades são cada vez menores. O colapso de lealdade interclasse torna o país um campo de batalha, de uma guerra civil não declarada, não política, mas de maneira nenhuma não violenta O velho problema político brasileiro de disparidades regionais agrava-se pela concentração cada vez maior de riqueza no sudeste e pelo colapso dos arranjos oligárquicos. Nos termos de Henry Maine, o princípio organizacional do status vai aos poucos desaparecendo, mas não é substituído pelo contrato. Triunfa a aleatoriedade, o Brasil passa a ser percebido como uma arena onde o destino é decidido pela sorte e pelo azar, em substituição ao progresso ordenado para um futuro luminoso. O Brasil, portanto, entrou em um período caótico de sua história
Os brasileiros perplexos com a situação se perguntam Por que é que o Brasil entrou neste período da sua história? Ninguém tem certeza da resposta, mas diversas hipóteses correm o País, como por exemplo:
1. Deus abandonou o Brasil contrariando a expressão tradicional que diz que "Deus é brasileiro";
2. Os militares "roubaram a história brasileira", isto é, tiraram-na do seu curso natural;
3. Inflação causada por diversas razões e recentemente as fórmulas encontradas para o seu controle.
4. Concentração excessiva da renda;
5. Dívida externa;
6. O povo é preguiçoso, não trabalha bastante;
7. Conspiração conduzida pela CIA;
8. Crescimento excessivo da população;
9. Elevados níveis de analfabetismo;
10. Políticos corruptos, especialmente o presidente e seus ministros.
11.Políticos corruptos, especialmente os Deputados e Senadores.
12. Fundo Monetário Internacional associado a banqueiros brasileiros;
13. Economistas no governo;
14. A falta de moral do povo: os brasileiros perderam a vergonha;
15. Mudanças culturais excessivamente rápidas;
16. Os brasileiros são manipulados pela mídia e não sabem votar;
17 O "jeitinho brasileiro": o modo brasileiro de contornar todas as regras;
18. Os brasileiros tentam tirar vantagem de tudo;
19. Investimento no mercado financeiro, desviando o investimento em atividades produtivas;
20. Os brasileiros perderam os valores religiosos;
21.A cidadania não está bem estabelecida depois de décadas de ditadura;
22. O sistema judiciário não opera bem;
23. Oligopólios em toda parte;
24. O Presidente da República (Collor) era viciado em cocaína ;
25. O Presidente da República (Collor) era doente mental;
26. O Presidente da República (Fernando Henrique) está destruindo o estado e, por conseguinte, a nação.
27. Déficit público causado por um excesso de empregos públicos, vantagens previdenciárias e ineficiência do governo;
28. O programa de privatização das empresas estatais não está indo tão rápido quanto deveria;
29. O programa de privatização das empresas estatais está indo rápido em demasia e em amplitude demasiada.
30. O carnaval. Os brasileiros preferem dançar, beber e fazer sexo e não levam nada a sério;
31. O modelo de industrialização por substituição de importações chegou ao seu limite;
32. A colonização portuguesa que constrói sociedades onde a preguiça substitui o trabalho árduo.
Esta lista poderia ser estendida ad infinitum. É por si só um testemunho da desordem que reina no país. Não só refletem como contribuem para a desordem.


[Continua...]

George Zarur.Sorte e Azar, Verde e Amarelo:modelos matemáticos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana Disponível em:<http://www.georgezarur.com.br/artigos/116/sorte-e-azar-verde-e-amarelo-modelos-matematicos-de-imprevisibilidade-aplicados-a-cultura-humana>. Acesso em 20/04/2011

[Parte 1] Criação de uma metáfora matemática para a antropologia.

Modelos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana.
 


Muitos anos atrás, Edmond Leach afirmava: "Eu não quero transformar a antropologia num ramo da matemática, mas acredito que podemos aprender muito, começando a pensar na sociedade de uma maneira matemática” (Leach, 1961). Este artigo compartilha desse ponto de vista e contribui para a atual discussão teórica em antropologia, explorando as possibilidades de tomar emprestada uma nova perspectiva teórica da matemática e das ciências naturais, a assim chamada "teoria do caos". [1]



Todos os paradigmas em antropologia utilizaram sempre modelos mecânicos, no sentido em que "seus elementos constitutivos estão na mesma escala dos fenômenos” (Levi-Strauss,1958, p.311).

De um ponto de vista formal, analogias biológicas em Antropologia são, também, modelos mecânicos, da forma como Levi-Strauss, assim como os cientistas naturais, os definem. Modelos mecânicos são deterministas o que significa que, como qualquer equação algébrica regular, e como a maioria das equações diferenciais, possuem apenas uma solução. Aplicados a fenômenos naturais e sociais, tais modelos são aqueles onde, dadas exatamente as mesmas causas, os resultados são os mesmos. Modelos deterministas, mecânicos, de um ponto de vista formal, são opostos a modelos estocásticos. [2]

A diferença entre modelos deterministas e estocásticos é essencial para compreender o conceito de "caos", conforme usado recentemente nas ciências naturais e na matemática. Num encontro da Royal Society em 1986, "caos" foi definido como "comportamento estocástico ocorrendo em um sistema determinista" (Stewart 1989, p.l7). Assim, nesta nova abordagem, desaparece a oposição absoluta entre modelos deterministas e estocásticos. Um exemplo típico deste novo arranjo é encontrado nas equações de Lorenz. Lorenz entendeu que as equações diferenciais (um típico "modelo determinístico") que usava nos estudos meteorológicos apresentavam resultados com alto grau de variações ("aleatórias") devido a ligeiras diferenças nos seus estados iniciais. Assim, as soluções para estes sistemas eram "instáveis e quase todas não-periódicas" (Lorenz,1963).


Alguns autores (cf. Marcus e Fisher,1986) associaram a "teoria do caos" ao movimento pós-moderno em literatura, humanidades e ciências sociais. Existem, contudo, diferenças muito significativas, apesar do fato de que “caos” e pós-modernismo literário possam ser considerados parte do mesmo movimento cultural amplo (Hayles, 1990), de contestação dos sistemas de explicação vigentes. A diferença mais impressionante é que "caos" está se tornando um novo e abrangente paradigma na matemática e na física, enquanto, na opinião desses antropólogos pós-modernos, o pensamento social da atualidade, inclusive o seu próprio, suspeitaria de “paradigmas abrangentes ”(Marcus e Fisher, op. cit. p. 5).

"Caos" poderá designar um novo e radical caminho para modelos deterministas na ciência, através da incorporação do fator aleatório. É uma expansão do território da ciência e da racionalidade enquanto o pós-modernismo literário, é em larga medida, uma crítica da ciência e da racionalidade.

A indistinção entre as fronteiras da antropologia e da literatura, como proposto por algumas tendências do pós-modernismo, representa uma forte ruptura interna à antropologia: um campo que surgiu nos museus de história natural e que foi percebido, por muito tempo, como a mais “ciência” dentre as ciências sociais.

A compreensão da antropologia como uma espécie de história a ser contada, isto é, apenas um tipo particular de criação literária, é muitas vezes justificada em nome de um relativismo ético e político (cf. Marcus e Fisher, op. cit.).

Não há dúvida que o relativismo representa uma das premissas éticas e metodológicas da Antropologia. Inexiste, porém, qualquer associação lógica evidente entre a adoção da metáfora literária como premissa na antropologia e o abandono de descrições etnocêntricas que exageram a violência, a crueldade ou o comportamento sexual bizarro de povos distantes. Isto é, entre relativismo e o “escrever da cultura”. Por outro lado, explicações que tomam, costumes estranhos inteligíveis e, portanto, racionais, podem desempenhar uma importante contribuição para a tolerância frente à diferença, pelos que pensam a diversidade humana. Há uma velha tradição filosófica (e até teológica) que associa racionalidade com tolerância

Tolerância e preconceito podem ser encontrados na antropologia desde seu início, mas a metáfora literária pós-moderna pode ser, por si só, um novo perigo para os "nativos" antropológicos. A falta de importância do autor e sua irresponsabilidade frente ao texto (cf. Foucault, 1979) - associada à prosaica, porém efetiva, pressão no sentido de se publicar para um público externo extenso, sonho de todo escritor - pode representar uma séria ameaça às populações estudadas. Autores literários escrevem para seus leitores e, conseqüentemente, têm a tendência de dizer o que sua audiência quer escutar, ou melhor, ler.

Esta reação, às vezes, sem uma discussão mais aprofundada, contra uma antropologia racional manifesta a reação global contra a racionalidade dos tempos de hoje.

A racionalidade entendida como a própria essência do humano é considerada, desde os gregos - idéia que voltou a se fazer sentir, com toda a força no iluminismo - a base para a organização da sociedade política: Rosseau e o “contrato social” seriam as instâncias típicas, pois os seres humanos, pelo uso da razão, acordariam em conviver segundo regras aceitas por todos. A razão nunca deixou, porém, após o surgimento de religiões como o cristianismo e o islamismo, de estar associada com a idéia de “alma”, com a escolha livre (“livre arbítrio”). Quando o Padre Bartolomé de Las Casas afirmava que os índios americanos eram seres humanos pois possuíam alma, dizia, também, que eram capazes de escolher livremente, racionalmente, entre o bem e o mal. 


Nos últimos anos, a premissa da racionalidade tem sido associada com planejamento e dirigismo centrais, violência do estado e governo militar-tecnocrático, contrariando a tese Weberiana central da racionalidade disseminada por toda a sociedade. O problema é que o “estado racional” , deste tipo, baseia na idéia da razão como privilégio de alguns que, em seu nome, e do saber técnico que a faria exclusiva, imporiam sua vontade ao restante da sociedade. Não obstante, ainda é um fato que a convicção sobre a qual se funda a democracia é a da racionalidade da pessoa comum e que a maioria dos indivíduos tem condições de escolher o que é melhor para si mesmos e para a coletividade.

É, assim, uma falácia rejeitar a premissa da racionalidade, por sua associação com a modernidade e os estados totalitários contemporâneos. Esses são justificados (hegelianamente) pela crença de que a razão cabe a poucos e identifica-se com o estado. A premissa da democracia é a oposta: a de que a razão se distribui por todos os indivíduos de diferentes estratos sociais.

As Ciências Sociais são ideologias que refletem e afetam as sociedades que as produzem, Assim, a escolha da poesia, por exemplo, por algumas linhas da antropologia pós-moderna, como o principal canal de comunicação entre culturas diferentes, exprime a suposição da impossibilidade de comunicação transcultural, pelo uso da razão. No entanto, tem sido esquecido, que em alguns contextos, um discurso densamente simbólico e poético pode tornar-se um pretexto para um comportamento irracional dos sujeitos do discurso e da ação, pois os seres humanos descritos, isto é, objetos do discurso e da ação seriam, também eles, irracionais, “maravilhosamente irracionais”, como o Zaratrusta de Nietzche.

A metáfora literária, sem maior crítica, pode também vir a ser uma ameaça séria para uma antropologia de boa qualidade, porque uma pesquisa cuidadosamente realizada não é condição para escrever uma peça literária. Assim, a identidade literária em antropologia pode produzir adjetivos em excesso e etnografias insuficientes, como, de fato, se tem observado em algumas produções do gênero.

Considerando a presente crise de paradigmas, tão bem diagnosticada por cientistas sociais pós-modernos, e a fragilidade da solução que apontam, essas são boas razões para discutir alternativas. Penso que a utilização de novos modelos matemáticos poderá contribuir para o avanço teórico da questão.

As principais propostas para usar modelos de caos como metáfora em antropologia são as seguintes:


1. A desordem é o estado comum na natureza . A organização é uma exceção e, apenas, um momento, uma descontinuidade interna ao estado de desordem.

A desordem absoluta seria pura aleatoriedade. Na teoria do caos, contudo, o modelo explanatório abrangente permanece determinista, mesmo aberto o espaço para várias soluções alternativas diferentes. O modelo determinista opera durante um estágio lógico na explicação e é suspenso durante o estágio lógico subseqüente.

A transferência desta posição metodológica relativa à natureza para o campo das ciências sociais é extremamente interessante. Propõe a desordem, intermediada por estágios e níveis ordenados, como a situação corrente na vida social e na cultura.

A implicação metodológica desta premissa no campo da Antropologia é a de que os antropólogos deveriam desistir de ingênuas tentativas de explanações funcionais, pois a falta de explicação é a maneira mais fiel de se retratar o mundo.

A existência de vastas áreas de vida social que, simplesmente, não podem ser explicadas, não representa um simples problema de contextualização adequada, pois os antropólogos podem supor que o seu modelo tenha se tornado caótico quando não podem explicar, e isto constitui, por si só, uma explicação. Além disto, a metodologia não deveria procurar, apenas, o que pode explicar, mas também o que não se pode explicar. Às vezes o inexplicável pode ser muito mais interessante do que o que o que explica através das cansativas explicações correntes. 


2 - Fenômenos caóticos podem ser descritos como sistemas de equações não-lineares (sistemas complexos)

Devido à primeira premissa acima, a da desordem, a pura descrição sem explicação, passa a ser assumida como um aspecto essencial do trabalho do antropólogo. A conseqüência para a metodologia antropológica é a de que os antropólogos deveriam sentir-se obrigados a descrever tudo o que encontram no campo, mesmo o que o não tem explicação.

Daí a analogia com sistemas complexos de equações.

Sistemas complexos de equações não têm solução, mas representam descrições eficientes de relacionamentos muito complicados. Quando transpostos para a antropologia, redescobrimos a idéia bastante familiar e antropólogos boasianos, de que enquanto não podemos explicar tudo, temos a obrigação de descrevê-lo da melhor maneira possível.

A necessidade de ser "elegante” , como na formulação de sistemas complexos, torna-se um grande desafio e uma constante necessidade quando um grande volume de dados é apresentado. Aqui a questão literária, o “escrever bem”, voltaria, mas com uma conotação bastante diversa das formulações pós-modernas, ou seja, como um forma de comunicação necessária ao exercício da razão. Não como uma forma de emoção estética alternativa à razão , mas como uma necessidade mesma do exercício da razão.


3. Alguns tipos de fenômenos apresentam uma extrema sensibilidade às suas condições iniciais.

O melhor exemplo aparece novamente nas equações de Lorenz. Tênues, imperceptíveis diferenças nas condições iniciais afetam o futuro comportamento do sistema em longo prazo.

Lorenz, um meteorologista, criou a expressão "efeito borboleta", querendo dizer que o bater das asas de uma única borboleta produz mudanças infinitesimais no tempo, em curto prazo, mas, em longo prazo, pode tornar-se a causa de tempestades ou mudanças atmosféricas em outra região do mundo. O fator do batimento da asa da borboleta não pode ser medido.

Transferida para a sociedade e a cultura humanas, a metáfora do "efeito borboleta" é fantástica. O comportamento de um único indivíduo pode afetar (ou não) o total da cultura e da história humanas. A própria borboleta batendo suas asas, mudando o tempo que influencia decisões humanas, pode mudar, assim, a cultura. A questão não é apenas de incerteza, mas também de imprevisibilidade. O acaso, a biografia e a vontade individual se tornam centrais na explicação. Grandes homens em posição poderosa podem ser estratégicos para explicar a moldagem da cultura porque sua influência é conhecida mas, aqueles que não têm poder podem também alterá-la, sem que o seu papel seja detectado.

A questão do poder e da decisão individual voltam a ser consideradas, na mudança e na estabilidade da cultura. 


4 - Diferenças de escala são essenciais na explicação

A relação entre uma borboleta que voa e um furacão (e vice-versa) é uma relação complexa entre fenômenos em escalas diferentes. Mandelbroth (1982) inventou a geometria fractal, baseada em diferença de escala, que tem sido entendidas como uma espécie de apêndice aos modelos de “caos”.

Diferenças de escala sempre foram um problema crucial nas ciências sociais. Um exemplo clássico de um tratamento de escala, especialmente indicado para o estudo de sociedades complexas, origina-se do conceito marxista de “totalidade” . Nesta ótica, a mediação entre totalidades parciais e sua relação com o todo é uma questão estratégica.

A escala tem sido um problema importante em antropologia, até para distinguí-la epistemologicamente da sociologia, devido à sua aproximação preferencial a grupos de pequena escala. As questões relacionadas à escala, na antropologia, têm abrangido questões tão diversas como o papel explanatório de totalidades funcionais, a noção etnográfica de holismo antropológico e os limites grupos étnicos, por exemplo.

As ciências sociais modernas empenham-se na formulação de modelos mecânicos. Alguns desses modelos estabelecem relacionamentos hierarquizados entre escalas diferentes. Quando tais modelos se tornam "caóticos", o relacionamento entre níveis de escala diferente fica desestruturado . A partir deste momento, o acaso e os acidentes caracterizam os relacionamentos entre níveis de escalas diferentes.


Estas proposições são as idéias básicas que podem ser extraídas da teoria do caos para criação de uma metáfora matemática para a antropologia São, também, os seus limites atualmente.

[Continua...]

George Zarur.Sorte e Azar, Verde e Amarelo:modelos matemáticos de imprevisibilidade aplicados a cultura humana Disponível em:<http://www.georgezarur.com.br/artigos/116/sorte-e-azar-verde-e-amarelo-modelos-matematicos-de-imprevisibilidade-aplicados-a-cultura-humana>. Acesso em 20/04/2011

domingo, 1 de maio de 2011

ORIGEM DO ZERO

Embora a grande invenção prática do zero seja atribuída aos hindus, desenvolvimentos parciais ou limitados do conceito de zero são evidentes em vários outros sistemas de numeração pelo menos tão antigos quanto o sistema hindu, se não mais. Porém o efeito real de qualquer um desses passos mais antigos sobre o desenvolvimento pleno do conceito de zero - se é que de fato tiveram algum efeito - não está claro.
O sistema sexagesimal babilônico usado nos textos matemáticos e astronômicos era essencialmente um sistema posicional, ainda que o conceito de zero não estivesse plenamente desenvolvido. Muitas das tábuas babilônicas indicam apenas um espaço entre grupos de símbolos quando uma potência particular de 60 não era necessária, de maneira que as potências exatas de 60 envolvidas devem ser determinadas, em parte, pelo contexto. Nas tábuas babilônicas mais tardias (aquelas dos últimos três séculos a.C.)  usava-se um símbolo para indicar uma potência ausente, mas isto só ocorria no interior de um grupo numérico e não no final. Quando os gregos prosseguiram o desenvolvimento de tabelas astronômicas, escolheram explicitamente o sistema sexagesimal babilônico para expressar suas frações, e não o sistema egípcio de frações unitárias. A subdivisão repetida de uma parte em 60 partes menores precisava que às vezes “nem uma parte” de uma unidade fosse envolvida, de modo que as tabelas de Ptolomeu no Almagesto (c.150 d.C.) incluem o símbolo  ou 0 para indicar isto. Bem mais tarde, aproximadamente no ano 500, textos gregos usavam o ômicron, que é a primeira letra palavra grega oudem (“nada”). Anteriormente, o ômicron, restringia a representar o número 70, seu valor no arranjo alfabético regular.
Talvez o uso sistemático mais antigo de um símbolo para zero num sistema de valor relativo se encontre na matemática dos maias das Américas Central e do Sul. O símbolo maia do zero era usado para indicar a ausência de quaisquer unidades das várias ordens do sistema de base vinte modificado. Esse sistema era muito mais usado, provavelmente, para registrar o tempo em calendários do que para propósitos computacionais.
É possível que o mais antigo símbolo hindu para zero tenha sido o ponto negrito, que aparece no manuscrito Bakhshali, cujo conteúdo talvez remonte do século III ou IV d.C., embora alguns historiadores o localize até no século XII. Qualquer associação do pequeno círculo dos hindus, mais comuns, com o símbolo usado pelos gregos seria apenas uma conjectura.  
Como a mais antiga forma do símbolo hindu era comumente usado em inscrições e manuscritos para assinalar um espaço em branco, era chamado sunya, significando “lacuna” ou “vazio”. Essa palavra entrou para o árabe como sifr, que significa “vago”. Ela foi transliterada para o latim como zephirum ou zephyrum  por volta do ano 1200, mantendo-se seu  som mas não seu sentido. Mudanças sucessivas dessas formas, passando inclusive por zeuero, zepiro e cifre,  levaram as nossas palavras “cifra” e “zero”. O significado duplo da palavra “cifra” hoje - tanto pode se referir ao símbolo do zero como a qualquer dígito - não ocorria no original hindu.  
 
  Fonte. Tópicos de História da Matemática para uso em sala de aula; números e numerais, de Bernard GUNDLACH.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

E-books grátis. O Blog

Segue uma dica o Blog E-books grátis [Clique aqui] disponibiliza uma vasta opção de literatura na área de antropologia.

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Alguns dos titulos disponíveis:

  • Evolucionismo Cultural – Morgan, Tylor e Fraser

  •  Aprender Antropologia – François Laplantine

  •  O que é Cultura – José Luis dos Santos – Coleção Primeiros Passos

  •  Mito e Significado – Claude Lévi-Strauss

 

 

 

 

Egito Antigo e o cálculo




 A civilização egípcia da Antigüidade desfrutou de uma longa estabilidade que preservou uma mesma estrutura social por vários milênios. Situada às margens do Nilo, o território dos Egípcios é cercado por desertos, o que o protegeu contra invasões. Essa longeva estabilidade permitiu um registro de dados astronômicos por milênios, dados esses que foram posteriormente reinterpretados por Ptolomeu no primeiro século de nossa era e, quinze séculos depois, por Nicolau Copérnico. 
 




 
Figura: Movimento das estrelas ao redor do polo norte celeste, um p ponto fixo do céu em qualquer época do ano. Os traços escuros representam o caminho aparente das estrelas no céu devido ao movimento de rotação da Terra.

A geometria egípcia se desenvolveu milênios antes da era cristã. Um fator propulsor desse desenvolvimento era a necessidade, num país agrícola, da demarcação das terras. Cercas ou marcos eram submersos ou apagados anualmente durante a época das cheias, exigindo um método mais abstrato de delimitação. A geometria egípcia estendeu-se no "projeto'' de suas obras de arquitetura. As Grandes Pirâmides, construídas ao redor de 3000 a.C., tinham faces orientadas para os pontos cardeais com precisão de grau. Acredita-se que esta orientação serviria para orientar a longa obra de edificação das pirâmides, oferecendo marcos direcionais duradouros. Podemos salientar nessas obras o amálgama de rigor geométrico associado ao sagrado, traço que se tornará mais explícito entre os gregos, e que foi importante sustentáculo filosófico das ciências exatas. 


 
Figura: Trecho de um rolo de couro egípcio, contendo cálculos. Junto com o papiro Rhind, é um dos raros documentos a respeito da matemática egípcia.


A antigüidade da civilização egípcia a tornou portanto precursora da civilização ocidental de diversos modos. A aritmética dos egípcios, ferramenta mestra para viabilizar a administração de uma vasta região controlada por um governo central, terminou, como veremos adiante, por ser assimilada pela cultura ocidental. Os conhecimentos que dispomos da aritmética egípcia provêm praticamente de um único documento, o papiro Rhind, com 80 problemas de matemática. Este papiro data de 1650 a.C. mas há evidências de que os métodos ali exemplificados seriam muito mais antigos.
Seu sistema de numeração, como o nosso, era decimal, mas não posicional tal qual o romano: existiam símbolos específicos para unidade, dezena, centena etc. As somas e subtrações eram realizadas agrupando-se os símbolos dos dois números correspondentes às mesmas potências de 10, um método próximo ao nosso algoritmo, mas sem uso do zero, uma vez que não era posicional. 


 

 

Figura:  Comparação entre uma adição no sistema decimal egípcio e no  sistema decimal indo-arábico.

A Multiplicação era reduzida a adições (cf. Struik), "tabuadas'' contendo multiplicações elementares. Por exemplo, para calcular $13 \times 11$ usa-se a "tabuada'' do 11 (multiplicado por potências de 2), expressando-se 13 como uma soma de potências de 2, assinaladas com um ``'': 
 
1 11
  2 22
4 44
8 88
Somas 13 143


  1. Inicialmente 13 é decomposto em potências de 2:
  2. Em seguida, somam-se as parcelas com dados acessíveis em uma tabela: . Uma coleção de tabelas auxiliares de cálculo egípcias funcionavam como ``tabuadas'' no sentido de acelerar os cálculos.
A aritmética egípcia privilegiava o cálculo através de frações, e através delas se faziam as divisões. Esta aritmética de frações era baseada nas frações unitárias, ou seja, com 1 no numerador. Uma fração era indicada graficamente com o número do denominador sobre o qual se colocava um símbolo matemático específico: um ponto ou uma espécie de olho estilizado. As demais frações eram então representadas como somas de frações unitárias, preferência singular desses habitantes do vale do Nilo.
Como foi possível decifrar os hieróglifos e conhecer sua cultura? Como foi possível acompanhar procedimentos tão antigos? Esta decifração é, de fato, relativamente recente. No século XIX, tropas de Napoleão encontraram no Egito uma pedra com caracteres diversos esculpidos - a pedra de Roseta -, que continha gravado um mesmo texto em três alfabetos diferentes. Um deles era composto pelos hieróglifos mais antigos, outro por hieróglifos de uma forma popular tardia (hierático) e o terceiro texto em grego antigo, língua bem conhecida no Ocidente atual. O primeiro passo para a decifração foi a comparação da escrita de nomes próprios presentes nos textos, entre os quais Alexandre, Ptolomeu, Cleópatra...
A escrita egípcia não era exclusivamente fonética. Ela possuía em seus primórdios um caráter pictórico, em que imagens representam idéias simples, podendo ser associadas de modo a originar idéias mais complexas. Assim, um olho com certos traços embaixo significava ``choro'', ao passo que duas pernas significavam ``correr'' e um pássaro podia significar o verbo ``voar''. A região do Alto Egito era representada por uma flor de lis, ao passo que o Baixo Egito era representado por um papiro, plantas características dessas regiões. Em suma, era inicialmente, uma escrita ideográfica posteriormente acrescida de símbolos fonéticos.


 
Figura: Decifração do nome próprio Cleópatra a partir de hieróglifos.

Palavras monossílabas passaram em um período mais tardio a representar os sons a que correspondiam na linguagem falada. Assim o hieróglifo que significava "altura'' (um triângulo) passou a representar o som "K'', por exemplo. No entanto, a despeito de possuir um alfabeto fonético suficientemente completo para representar todas as palavras, os egípcios conservaram muitos dos símbolos ideográficos, além de símbolos especiais para certas sílabas, de modo a reunir uma variedade de uns 500 símbolos diferentes.
Podemos encontrar nesta civilização elementos importantes de nossa própria matemática, em particular seu caráter híbrido, combinando características alfabéticas e ideográficas em uma mesma linguagem. Uma operação aritmética, como a representamos hoje, pode ser considerada um ideograma, no qual a distribuição espacial dos símbolos lhes confere inter-relações específica. O mesmo se pode dizer de símbolos do cálculo integral (derivada ou integral) ou de um operador (o gradiente, por exemplo) atuando em um campo vetorial. Exatamente como no ideograma, as posições relativas de seus elementos traz implícita a atuação de um elemento sobre outro no significado da expressão.
Por ser uma linguagem ideográfica, nossa notação matemática independe do idioma do leitor. O mesmo ocorre com o chinês ideográfico, assimilado no Japão como alfabeto kanji, que é compreensível a um chinês ou japonês eruditos, embora o pronunciem de maneira deversa.
Para entendermos algo da astronomia egípcia, temos de examinar sua cosmogonia, como concebiam a criação do Universo: o mundo teria se formado a partir de uma infinita massa de água. Acredita-se que esta mitologia tenha vindo da Babilônia, que tinha crença semelhante, pois o Egito está próximo do deserto. O rio Nilo, que tem aproximadamente o sentido Norte-Sul seria um afluente de um outro rio maior que corre no sentido Leste-Oeste, fluindo até o reino de Osíris, onde estão os mortos. O rio é materialmente representado pela Via Láctea. Ao longo deste rio a correnteza arrasta um barco que leva o Deus Rá (Sol). O barco é ocasionalmente atacado por uma gigantesca serpente, produzindo os eclipses.
As enchentes anuais do Nilo foram associadas com as cheias do rio celestial, que mudam o trajeto do barco do sol, o qual navega sempre perto das margens do rio celestial. Os céus são vistos como uma réplica ampliada da Terra. A Lua renasce cada mês e é atacada por uma porca, que a faz agonizar lentamente, minguando, para em seguida voltar a nascer crescente. Os planetas também eram vistos como barcas, e a da divindade correspondente a Marte veleja por vezes para trás (este costume de tal divindade corresponde astronomicamente ao movimento retrógrado do planeta Marte em certos períodos).
Ao longo do ano, mudam as constelações visíveis e, na astronomia egípcia, a ``constelação Helíaca'' é a que aparece no céu logo antes do nascer do sol. O céu é primordialmente um preciso calendário regente dos ciclos agrícolas anuais. Por exemplo, o aparecimento de Sírius antes do nascer do sol anunciava a estação das chuvas. Existe uma evidente semelhança entre a divisão do ano em constelações e os signos e ascendentes da astrologia ocidental. O principal compilador da astrologia da Antigüidade para o Ocidente foi Ptolomeu, que viveu no Egito, em Alexandria no século II d.C.. Sua obra ``Tetrabiblos'' contém traços essenciais da atual astrologia Ocidental, parcialmente herdeira da cultura egípcia.
Além da medida do tempo ao longo do ano pelas constelações, os egípcios possuíam um calendário administrativo de 360 dias mais 5 dias sagrados, que se defasava gradualmente do calendário puramente astronômico, medido pela ``constelação helíaca'', e que regia o calendário agrícola de semeaduras, colheitas etc. Os dois calendários se ajustavam periodicamente, para ser exato, a cada anos. Este ciclo, chamado de ano helíaco.
Tal calendário já era usado desde as primeiras inscrições egípcias conhecidas, tendo permanecido em uso até o inÍcio da era cristã. Além da evidente importância dessa longeva continuidade no estabelecimento da cronologia histórica, este calendário contém uma grande massa de dados astronômicos, registrando os ciclos lunares, eclipses e outros eventos astronômicos que deram base à astronomia subseqüente. De maneira indireta, chegaram até Copérnico, 1500 anos depois, para sustentar a teoria heliocêntrica do sistema solar.

Prof. Hugo Franco, Apostila de Evolução dos Conceitos da Física. Publicação IFUSP 1336/98; 2a edição 2002. Disponível em: < Clique aqui > Acesso em: 20 Abr. 2011